IAN – Raivera
Desafio e liberdade

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Uma sala de aula de um liceu algures em Portugal, 1999. Há uma rapariga loira sentada ao fundo, aparentemente igual a todos os adolescentes do resto da classe. Mas se repararmos com atenção percebemos um olhar que ao mesmo tempo revela estranheza, alguma insegurança. O olhar de um estranho numa terra estranha. Com uma diferença: esse estranho parece não ter medo e o que está por detrás daquele olhar resume-se a um adjectivo: desafiador.

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Portugal, 2020. A adolescente cresceu e neste momento está à minha frente, enquadrada num ecrã, como nos pedem estes dias estranhos. Sorri quando lembra quem foi e confirma: «Sim, não foi fácil quando cheguei a Portugal. Foi um choque cultural para quem até essa altura tinha vivido na Rússia e teve de lá sair. Não sabia a língua, nada… Imagina, uma miúda rebelde que de repente leva com as cantigas d’amigo e Os Maias !», ri. Rebelde, lá está. Explicado o ar de desafio.

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Haveremos de voltar a esta palavra: desafio. Por enquanto, fiquemos para já a conhecer melhor quem se chama Ianina Khmelik e, para o que aqui verdadeiramente nos interessa, Ian. É esta última que se prepara para apresentar o seu primeiro disco – Raivera, um neologismo composto que em russo significa “paraíso” (rai) e “fé” (vera). O título esperançoso pode enganar pelo seu aparente optimismo quando comparado com o que dizem as nove canções deste disco. Mas ao mesmo tempo não o desmentem. Eis o primeiro maravilhoso mistério. E há mais. Mas lá iremos. Primeiro, pergunto em que é que Ian é diferente ou complementa Ianina Khmelik: uma violinista de formação clássica com um vastíssimo currículo e actualmente a tocar na Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. «Bom, eu procuro distanciar-me do meu trabalho como violinista clássica, quer na música quer na imagem que tenho em palco. Ian e Ianina são de facto a mesma pessoa mas com maneiras artísticas diferentes». Engane-se quem pense que o percurso de Ianina se limita ao repertório clássico. Amante de Stockhausen e música contemporânea, Ianina teve várias colaborações no universo pop e rock (GNR, The Gift, entre outros), é actriz e participou mesmo num estudo levado a cabo pela universidade do Porto (Faculdade de Engenharia e Faculdade de Medicina Dentária) na realização do projeto-estudo “Inside Music Machine”, um espectáculo onde era possível visualizar, através de equipamento termográfico, o aquecimento dos músculos do artista durante a performance e em tempo real. O universo de Ianina é feito à medida dos seus interesses e – cá está – desafios: vários e sem fronteiras.

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Mas agora, Ian e Raivera. Depois dos primeiros EP, lançados em 2018, o primeiro álbum. Para unir as nove canções, uma epígrafe de um filósofo alemão, Arthur Schopenhauer, que no caso serve como declaração de intenções: “ É difícil encontrar a felicidade dentro de nós mas é impossível encontra-la noutro lugar”. É esta peregrinação interior que é perceptível nas canções de Raivera, mesmo naquelas em que se pressente algum negrume, uma raiva contida. Digo isto a Ianina, que interrompe o sorriso por um momento: « Sim, é provável. Isso poderá ter que ver com a minha vida, com o facto de ter fugido de uma ditadura, de ter família ligada ao governo na Rússia… E também de compositores de que gosto, como Prokofiev ou Shostakovich, que têm muita raiva camuflada em tom maior».

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Mas Raivera está longe de ser um disco de ajuste de contas sobre o que quer que seja. É sobretudo um exercício de liberdade, algo que Ian muito preza e pratica, quer na forma magnífica como funde a electrónica com melodias cativantes, quer na atitude que em palco transmite, com uma imagem fortíssima: «Em palco estou sozinha e livre, o que adoro. E tenho uma forte componente teatral, que acho que resulta.» Resulta, sim. As canções de Raivera pedem esse dramatismo, são narrativas, pequenas vinhetas ora melancólicas (Again), mais festivas (Boarding Now) ou dolorosas (o magnífico Vera, que fecha o disco de forma mais que perfeita). E há um leque de emoções intensas, por vezes quase contraditórias: desde o convite para mundos mais marginais e sombrios que é Rai, o sorriso doce e perverso que se percebe em Good Girl ou o desejo irreversível de um paraíso mesmo que efémero, presente em Temporary Perfect. Ian é complexa, imprevisível. E isso garante ainda mais força a estas canções.

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A produção de Nuno Gonçalves é cúmplice nesse entendimento e é também por isso que Raivera apresenta uma coerência musical e afectiva rara. O resultado ao vivo é forte e contagiante e uma pequena digressão no México comprovou-o: « Foi muito bom, sim!», e eis que regressa o sorriso.« Estive em várias cidades e a reacção foi fantástica! Numa delas até me proibiram de sair à noite por questões de segurança: era loira…», ri.

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É então mais do que altura de conhecermos Ian e Raivera. Fé e paraíso, certamente. Mas desafio e originalidade, uma pop contemporânea e sem medos, acompanhada por uma dimensão performativa que irá surpreender quem a vir. Apesar de ter já feito as primeiras partes de alguns concertos dos The Gift, Ian precisa de mais tempo e espaço para a sua arte. Nós também precisamos dela, acreditem.

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Queria só lembrar outra palavra que como um alicerce belo e invisível sustenta toda esta personalidade artística, esta identidade mais do que original. É o título de uma das canções e está escrita em alemão: Freiheit. Liberdade, Ian. Liberdade.

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Nuno Miguel Guedes